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Dica literária: “Graça Infinita” de David Foster Wallace (1996)

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Sim, após 3 meses, finalmente terminei de ler “Graça Infinita”, o magnum opus de um dos maiores gênios da literatura contemporânea, David Foster Wallace, do qual eu já falei aqui.

“Graça Infinita” é um calhamaço com mais de 1000 páginas em sua história e mais de 100 só de notas (para ajudarem o leitor a se encaixar no meio de tanta informação distribuída gratuitamente para o leitor). É facilmente identificado ao menos 3 histórias principais, ou melhor, 3 núcleos de personagens principais: A Academia de Tênis Enfield, a Casa de Recuperação para Viciados Ennet e um discussão num fim de tarde entre um espião de uma agência governista estadunidense (que devido ao seu trabalho encontra-se disfarçado como uma repórter gorda de uma revista sobre celebridades) e um membro de uma organização terrorista formada por cadeirantes canadenses que procuram a separação do Quebéc da ONAN (na história, os Estados Unidos, o Canadá e eu imagino que o México também, apesar dele ser raramente mencionado na história formaram um só país, a Organização das Nações Norte-Americanas), conversa essa que vai do fim da tarde até o início da manhã no dia seguinte, passando por toda uma madrugada de discussão ideológica, que serve, principalmente, para situar o leitor nos acontecimentos socio-políticos da história, mas repare, que esse último “núcleo” não é, substancialmente, necessário para o andamento da história, que conta como fato principal uma fita de vídeo (não necessariamente uma fita de vídeo como nós conhecemos, é mais uma tecnologia nova que foi inventada a qual o mundo todo aderiu) chamada “Graça Infinita”, criada pelo ex-tenista e ex-cientista interessado em ótica, que virou cineasta, James Orin Incandenza Jr., que contém um nível tão alto de entretenimento que faz seus espectadores ficarem tão interessados nela que acabam morrendo, perdendo o interesse em todo o resto de suas vidas. Cópias dessa fita começaram a ser distribuídos eliminando o mapa de algumas pessoas, chamando a atenção do governo da ONAN e da organização terrorista. James também foi o fundador da Academia de Tênis Enfield e, na época em que se passa a história, se suicidou. O núcleo da Academia é contado do ponto de vista de Hal, seu filho do meio, apresentando seus irmãos, Orin e Mario, além da mãe, Avril, além dos funcionários da Academia e seus outros estudantes (a Academia funciona também como internato). Situada no topo de uma colina, a ATE é quase vizinha à cada Ennet, que fica na base da colina e alguns de seus funcionários trabalham lá (na ATE). Esse segundo núcleo segue, principalmente, do ponto de vista de Don Gately, um brutamontes que já foi ladrão e viciado em drogas (talvez, não necessariamente nessa ordem), seguindo sua vida como funcionário da Ennet, apresentando-nos sua extensa gama de personagens, a maioria viciados em algum tipo de droga se tratando.

Isso é mais ou menos tudo que você precisa saber antes de adentrar nesse mundo distópico em que se passa “Graça Infinita”. É um romance enciclopédico e encarado por muitos como o Grande Romance Americano, um livro que sintetiza tudo que era a sociedade estadunidense no final do século XX. E, de fato, é um livro que é encarado muito mais como um livro de crítica (mais ou menos como os livros do Orwell são encarados), no entanto, trata-se, na verdade, de um romance filosófico, mas um romance em que a filosofia que ele tenta apresentar é marcante e fácil de ser notada. O pensamento filosófico de DFW está incluído entre linhas, nas centenas de diálogos verborrágicos narrados, nos trechos em 1ª pessoa, que apresentam com maestria a mentalidade de seus personagens, a confusão de suas mentes, nas mais de 300 notas no final, na descrição extremamente detalhada de acontecimentos tão banais que, no dia a dia, você nem chega a notar.

David Foster Wallace acredita que a sociedade americana “desmoralizava” tudo, se afastava da moral que deveria manter o espírito dos indivíduos ativo e isso se refletia na literatura, que acabava se tornando uma literatura do nada… Isso é mais fácil de explicar no próprio exemplo dele, quando ele cita que a grande qualidade de Dostoiévski para os estadunidenses (e por que não para os ocidentais?) é que ele tem um engajamento profundo com os dilemas morais que os estadunidenses não se permitem ter, disfarçando esses questionamentos inerentes a cada um e se afundando em seus diversos vícios. Em “Graça Infinita”, DFW queria enfatizar que os escritores devem ligar sua vida à literatura, mas não é algo que serve apenas para os escritores, é algo a ser encarado por todas as pessoas, seja lá qual for o seu ofício. É um tema recorrente nas mais de 1000 páginas do livro,  encontrar sua raison d’être, cumprir o seu ofício pelo ofício e não por uma recompensa ao final do caminho, ater-se a um código moral e encarar aquilo como essencial para a sua vida, acreditar em algo maior e mais duradouro que você, que pode te dar forças nos momentos que você mais precisa, seja isso Deus ou um conjunto de deuses ou qualquer outra coisa que dá um sentido espiritual pra sua vida.

A maioria de seus personagens não estão nem perto de perceber isso, presos aos mais diversos vícios, numa vida de cinismo e individualismo deprimente pra caramba, se você começar a analisar as entrelinhas do livro. Seus “melhores personagens (de um ponto de vista moral), que buscam um caminho melhor são marginais, deformados ou detonados demais pelos vícios que guiavam sua vida até um momento em que isso se tornou insuportável. Só existe um personagem honesto no livro todo e ele detém todo tipo de deformação que você nem consegue imaginar como ele é.

Mas assim como Gately, com certeza o meu personagem favorito, disputando a vaga com Mario, DFW se encontrava num caminho, ele mesmo vítima de diversos vícios, em busca de uma vida mais satisfatória, mas ele também acabou se suicidando e ao final do livro, não é nem o final repentino, nem a falta de exatidão com que as histórias terminam por se desenrolar que mais incomodam o leitor, mas a triste constatação de que nem mesmo DFW, para muitos o catalisador (para outros como eu, um combustível a mais) nessa busca pelo sentido mais profundo do que a vida contemporânea pode nos oferecer, encontrou as respostas que procurava, por que o cara se suicidou em 2008, deixando um livro inacabado, que, pelos poucos trechos que eu li, não só não encontra respostas para os questionamentos que levanta, como se vê preso neles, num labirinto sem saída.

Esses fatos te fazem pensar. Sem sombra de dúvidas DFW é um gênio, sua escrita é magnífica, a forma narrativa com a qual “Graça Infinita” foi criado é sensacional, talvez merece de fato o título de Grande Romance Americano, mas ainda cai por terra perante gigantes da literatura russa, por exemplo, que podem não ser tão gigantes quanto “Graça Infinita” e você pode ainda não gostar de suas respostas, mas eles são capazes de responder nossos questionamentos.

Se do ponto filosófico “Graça Infinita” chega a ser desolador, do ponto de vista literário é um deleite. DFW varia entre diversos estilos narrativos, dando corpo para as cenas, fazendo você senti-las de verdade enquanto lê, além de ser muito inventivo, criando termos, palavras e desafiando o leitor com suas notas de rodapé que às vezes se estendem por página a fio, suas abreviações e termos rebuscados ou criados. Só por isso, o livro já compensa muito, por que você vai se ver encarando todos os tipos de história, se assustando com sua capacidade de olhar para o banal e ver algo novo, reluzente, esperando uma descrição profunda.

A edição brasileira é do final de 2014, acho, mas decidi manter o ano original no qual o livro foi lançado para essa dica, por que isso é importante. Na época em que foi escrito não havia um computador em cada casa americana ainda e a internet não era nada mais que um espaço diferente a ser inserido com as mesmas ideias, então alguns relatos são meio datados, como por exemplo a tecnologia de interfacear com a pessoa, um aparelho de telefonia, mas que também transmitia imagens e no livro não dá certo, por que ninguém consegue mais ser natural ao falar com outra pessoa, gerando toda uma nova gama de transtornos psicológicos a serem tratados. Hoje conhecemos essa tecnologia pelo nome de Skype e se ela não deu certo é por que é um programa antiquado e ruim de usar mesmo, mas seus concorrentes estão aí pra melhor isso. Sem contar a tecnologia de fitas que ainda existe no futuro não muito distante de “Graça Infinita”, um absurdo de se imaginar hoje em dia.

A Cia. das Letras fez um ótimo trabalho também, lançando o calhamaço numa edição muito bonita, com páginas amareladas, bordas alaranjadas, uma capa branca sem título, só com um desenho muito importante para a obra, quase um spoiler, na verdade, sendo o seu único defeito o fato da capa não ser muito mais grossa que as páginas e o livro acaba sendo difícil de ser conservado. Um trabucão desses clama por uma capa dura, além de costura nas páginas, não simplesmente uma cola… Se bem que isso também geraria um certo incômodo para segurá-lo confortavelmente, mas enfim… Tá boa a edição!

Enfim, “Graça Infinita” é altamente recomendado, não espere encontrar respostas, não só para as questões filosóficas, mas também para as tramas internas que se desenrolam no livro também, mas leia tranquilo, sabendo que essa é uma jornada que irá te propor muitos ótimos momentos em sua vida.

5 pontos

2 comentários em “Dica literária: “Graça Infinita” de David Foster Wallace (1996)

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